"Revela coisas profundas da escuridão e traz à luz densas sombras."
Jó 12:22.
True Detective, o
seriado de 8 partes da HBO, me segurou pelo personagem Rust Cohle (Matthew
McConaughey). Um indivíduo inteligente, introvertido, cético, totalmente desiludido da
vida em oposição ao parceiro Marty Hart
(Woody Harrelson), homem de família, religioso e profissional mediano no
interior da Louisiana, região dos pântanos, das superstições católicas e das
práticas vodus.
O seriado se edifica na batida perseguição ao serial killer ritualístico, aqui
deixando a sua vítima, uma jovem prostituta, ornada com adereços celtas: chifres de
veado, folhas e pintura em espiral. A diferença do roteiro é que se estende por quase
vinte anos iniciando em 1995 com a chegada de Rust na cidade até os dias de hoje. Nesse desenvolvimento vemos a diferença marcante entre os
parceiros: o ímpio versus o crente, introvertido versus extrovertido, o isolado versus o homem de família no clichê de policiais que se complementam mas não gostam muito de trabalhar um com o outro. Observamos também o quanto a atividade
policial cobra dos profissionais, facilmente destruindo lares devido ao contato com o pior da espécie humana aqui mostrado no
assassinato e abuso sexual infantil. A iniquidade do mundo revela-se no seu esplendor em crimes envolvendo crianças. Rust torna-se obcecado por desvendar o crime
e encontra obstáculo na burocracia do sistema e no vínculo com pessoas influentes
que o crime contém, como um religioso responsável por trabalhos sociais com
crianças. Com o desenrolar aprendemos que Rust perdeu uma filha, separou-se da esposa e trabalhou infiltrado numa gangue consumindo todo tipo de drogas e o quanto isso tudo
contribuiu para a sua via crucis. Depois de anos investigando o crime de
forma apócrifa e o conectando a outros assassinatos semelhantes, não suportando
a barra, Rust se demite e some da cidade enquanto Hart separe-se da esposa
devido a traições cometidas por ele – uma forma de aliviar o peso da profissão
policial que a monótona vida familiar não tinha condições de fazê-lo. Ambos conseguem
chegar a um dos criminosos e resolvem a situação, mas Rust tem a convicção que
existem outros.
Perversão do paganismo pelo cristão.
A trama mostra dois períodos de tempo distintos: o passado quando os dois policiais eram parceiros e o presente onde Rust é investigado por crimes semelhantes aos que investiga. Hoje Rust é um eremita, pulando de emprego em emprego, amortecendo-se no álcool, um homem degradado e Marty trabalha como detetive particular divorciado da esposa e longe das filhas, mas como uma vida confortável - a razão pela qual ele abandona a polícia também é indigesta. Após se encontrarem novamente, Rust convence Marty a ajuda-lo a continuar atrás dos criminosos, pois durante os anos separados, ele encontra uma forte evidência: uma fita de vídeo mostrando assassinato de uma das crianças. Em trajes que remetem entidades pagãs da natureza, os participantes, antes de matar a menina, abusam sexualmente – isso não é mostrado, mas podemos perceber pela reação de Marty ao assistir. Ambos então continuam a investigação, usando métodos tradicionais de investigação (nada da pirotecnia forense de muitos seriados atuais) chegam ao verdadeiro executor dos assassinatos. Também outro clichê: o caipira que mora isolado e coabita com uma irmã doente mental vivendo num pardieiro - o caos externo que reflete o interior do vilão.
Rust: homem de pouca fé.
Rust sai em perseguição ao vilão através do matagal que
cerca a casa chegando em uma grande construção abandonada. Ele desce ao
inferno atrás do diabo. O local é como um labirinto: inúmeras entradas que
levam a outras, em um cenário de paredes de tijolos envelhecidos, roupas e
panos velhos, folhas e galhos secos ao redor; a degradação da natureza – tão degradação quanto a ritualística utilizada
pelos assassinos pervertendo cultos silvestres primitivos e pelo uso de
crianças. O vilão vai chamando Rust cada vez mais para dentro do submundo expressando-se de forma religiosa ao
justificar os próprios pecados. Chegando ao salão principal, a câmera nos exibe uma
abertura no alto que deixa amostra o céu, servindo como prenúncio para
um evento divino – não é a toa que Rust veste camisa branca, como se também
predissesse purificação. Ao caminhar pelo salão depara-se com ossadas e, olhando para uma parte escura do local, tem uma visão. Hipnotizado pelo evento ele fica a mercê da besta que, emergindo das trevas, o ataca. É salvo pelo parceiro após levar uma
facada no abdômen permanecendo na fronteira entre a vida e morte. Posteriormente no hospital ambos conversam e Rust se
abre contanto a visão:
“Teve um momento quando
eu estava na escuridão, a que quer que eu tenha me reduzido, não era em
consciência, era uma lucidez vaga na escuridão, pude sentir minhas definições
se desvanecendo. E por baixo dessa escuridão havia uma de outro tipo. Era mais
profunda e confortável, como uma substância.
Eu pude sentir, cara. E
eu sabia que a minha filha estava me esperando lá. Pude sentir uma parte do meu
pai também. Era como se fosse parte de tudo o que amei, e estávamos todos os
três... desvanecendo. Tudo o que eu tinha que fazer era seguir em frente. E segui.
Eu disse: “Pode vir,
escuridão”. E desapareci. Mas eu ainda podia sentir... o amor dela...mais forte
do que antes. Não tinha nada além daquele amor. E então eu acordei.
“Aquele que combate
monstros deve tomar cuidado para que não se torne um. E quando se olha
para o abismo, o abismo olha para você.” Friedrich Nietzsche
A série toda é permeada pelo religioso: o local
de cultura católica que permite muito mais superstições do que a protestante, a
ritualística degradada de cultos primitivos pela ótica dos cristãos pervertidos, o envolvimento nos eventos do religioso dono
de obras sociais, o discurso do assassino dentro do labirinto, as tomadas da imensidão geográfica apequenando o homem e claro, a
epifania do herói que se auto-imolou cristicamente durante anos - até a sua aparência no presente lembra Jesus Cristo. Foi uma
experiência tão sublime que ele muda de posição como expresso no diálogo final com o parceiro ao lembrar o quanto fitava as estrelas na juventude:
Marty: Bem, sei que
não estamos no Alasca, mas me parece que a escuridão tem mais território.
Rust: Você está
percebendo errado o lance sobre o céu.
Marty: Como assim?
Rust: Antigamente só
existia a escuridão. Na minha opinião a luz está vencendo.
Se Paulo de Tarso prendeu-se na imagem, dogmatizando uma
experiência divina, Rust compreendeu o verdadeiro significado da metanoia; ele não foi religioso, mas
místico. Rust mergulhou fundo na escuridão dedicando toda a sua vida a jornada espiritual em direção às trevas ao continuar investigando um caso perdido por anos, lidando com situações desagradáveis com grande probabilidade de impunidade. Aliás, outros membros do culto não foram presos, mais especificamente, o tal religioso das obras sociais. Esta, definitivamente, não foi uma história de caça ao serial killer.
O nome da série é no singular e não no plural pois referiu-se ao Rust, aquele que combateu monstros, não tornou-se um e purificou-se ao olhar para o abismo que existe no homem. Ser policial é uma profissão ideal para isso.
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