segunda-feira, 10 de março de 2014

Inspirações em Quadrinhos - Parte II: Steve Englehart e o Doutor Estranho (um mago muito melhor do que John Constantine)



Steve Englehart é um escritor estadunidense, formado em psicologia, que enveredou por várias personagens de quadrinhos (Batman, Capitão América, Vingadores, Liga da Justiça citando alguns) sendo um dos mais profícuos autores do meio nos anos 70 e 80. Foi indicado a vários prêmios da indústria de quadrinhos ganhando o Eagle Awards como melhor escritor em 1978 entrou para o rol da fama do Eagle.


 Steve Englehart


Conheci a prosa de Englehart nas estórias do Doutor Estranho em Super Aventuras Marvel. O Doutor era um cirurgião arrogante chamado Stephen Strange que, após um acidente que deixou suas mãos inúteis para prosseguir na profissão, saiu pelo mundo atrás da cura e foi parar no Tibete. Lá conheceu um mestre místico, na batida imagem do velho oriental, chamado de Ancião que o aceitou como discípulo. Após o treinamento de anos tornou-se o melhor aluno do sábio e saiu pelo mundo combatendo as forças do mal em magia. Voltado mais para as aventuras de fantasia, em oposição ao pseudo realismo popularizado de Hellblazer da Vertigo(1), sendo mais conhecido da geração atual, o Doutor viajava entre dimensões no seu corpo astral enfrentando seres demoníacos e encontrando entidades cósmicas como Pesadelo, o senhor do mundo dos sonhos, o Tribunal Vivo, uma entidade onipotente responsável por manter o equilíbrio da realidade e a Eternidade, a personificação do universo.

 Doutro Estranho encarando a Eternidade. Por Steve Ditko.


Possuí um manto de levitação e um artefato chamado Globo de Agamotto (as vezes 'olho') que lança rajadas de energia, dissipa ilusões dentre qualquer outra necessidade do autor da aventura. Criado por Stan Lee e desenhado por Steve Ditko em 1963, o Doutor Estranho tem como características realizar mudrás (2) na hora de fazer seus feitiços e dizer o nome dos encantamentos numa terminologia fantástica como ‘Faixas de Cyttorak’ e ‘Escudos de Serafin’ – o criador disse que os hippies dos anos 60 adoravam o personagem e buscavam leituras subentendidas nas estórias, mas nada havia de mais ali; era apenas diversão por parte dos autores.


Dr. Estranho na sua forma astral e fazendo o mudrá do capeta nos anos 60...


...que aprendeu com o seu mestre, O Ancião. Por Steve Ditko.
 
Englehart assumiu as aventuras do mago em 1973 graças a indicação de um desenhista cabeludo do Brooklyn chamado Frank Brunner que andava por aí com livros de Carlos Castaneda e H.P. Lovecraft. Na verdade Brunner havia saído do título, pois o escritor, o veterano Gardner Fox, não estava se empenhando muito nas estórias. Após Fox deixar a revista, o editor Roy Thomas quis trazer Brunner de volta e este, por sua vez, indicou para escrever um cara que ele conversou em algumas festas sobre cabalá, astrologia e satanismo. A parceria foi profícua e os dois se reuniam bimestralmente na casa de cada um para jantar e ficavam até as 4 da manhã conversando sobre o personagem, tomando LSD e viajando no filme de Charles Bronson, 'Desejo de Matar'. Quando não estavam em suas casas, saiam com Jim Starlin e outro colegas para tomar mais LSD, vagar por Manhattan e trocar ideias sobre a vida o universo e tudo mais.

Frank Brunner: Desejo de Matar com LSD.


A primeira aventura deles que li foi em Super Aventuras Marvel n°6. Produzida em 1974, conta a história do Dr. Estranho enfrentando um demônio chamado Shuma Gorath que tomou o corpo do Ancião. No decorrer o doutor percebe que não tem outra alternativa senão matar o próprio mestre para derrotar o inimigo.  Após o feito torna-se o Mago Supremo da nossa realidade, mas fica inconsolável e pensa em renunciar a magia e segue o diálogo abaixo: 

 Um mestre ascencionado. Arte de Frank Brunner.

Percebemos então que, após o discípulo matar o ego do mestre, este se torna uno com o universo. ‘Quando o discípulo está pronto, o mestre desaparece’ é um dos ditados famosos dos praticantes de magia. Esta passagem é carregada de referências as disciplinas orientais de desapego da matéria em prol da evolução da consciência.


Nas edições 10 e 11 da mesma revista, o Dr. Estranho enfrentou um mago do século 31 chamado ‘Siseneg’ (anagrama de ‘Gênesis’) que volta no tempo para absorver a energia mística que era fraca na sua era. Tem como plano recriar o universo de acordo com a própria concepção assumindo o lugar do deus judaico-cristão. À medida que volta no tempo ele age como o referido deus agia na história humana até chegar ao início de tudo e ali descobre que o seu objetivo era impossível, pois existia um poder superior e perfeito (que o autor não chamou de ‘Deus’). Então Siseneg, em seu estado elevado, divaga sobre o plano cósmico da espécie humana evoluir longamente até tornar-se algo divino. Ciente disso refaz toda a criação como era antes de modifica-la e desaparece. 


 Siseneg: "Não há deus senão o homem". Arte de Frank Brunner.

Englehart criou Siseneg após uma conversa com os colegas de profissão Jim Starlin e Alan Weiss debaixo de uma cachoeira quando discutiam sobre Deus.

Depois na edição 15 de Super Aventuras Marvel Stephen Strange enfrenta mais um desafio, só que agora, literalmente mortal. Preso dentro do Globo de Agammotto por um ex-cardeal católico praticante de magia negra chamado Adaga de Prata, e após enfrentar inúmeros perigos surreais ali dentro (encontrando até a lagarta de ‘Alice no Pais das Maravilhas’), lemos a seguinte divagação do herói:



O primeiro ordálio do Mago Supremo. Arte de Frank Brunner.

Grande lição! Então, após morrer, o cenário muda e surge o Ancião, em sua forma cósmica, comunicando que o Strange venceu a primeira de uma série de provas que deveria se submeter como o mago supremo. Ele havia expulsado o medo da morte e recebeu, então, um ‘ankh’ na fronte do corpo astral.



Ankh, vida, morte... Será que Neil Gaiman curtia o Doutor? Arte de Frank Brunner.


A segunda provação do Doutor Estranho não saiu no Brasil, mas consegui na internet. Ele enfrenta a Eternidade (que na estória se autodenominou Adam Kadmon), a personificação do universo, que capturada por Pesadelo é manipulada e só pode ser detida com ajuda do Ancião que, novamente, retornou do Nirvana para ajudar o discípulo. Na primeira ele aprendeu a inevitabilidade da morte e na segunda a nunca abandonar a esperança pela vida. Ao final tem a surpresinha onde, ao partir, o Ancião se mescla com a figura da Eternidade dizendo ao discípulo: 'Que cara é essa? Sentiu-se traído? Surpreso? Eu não disse a você que havia me tornado uno com o universo?'


Pelas Víboras de Valtorr: o Ancião vencendo a Eternidade com um O-soto-gari . Arte de Gene Colan.


A fase de Englehart no Doutor Estranho (1973-1976) foi um tanto polêmica. Primeiro com a saga de Siseneg: o editor chefe, Stan Lee, viu a prova final da última edição e receoso de ofender leitores religiosos com a audácia em substituir Deus, pediu para Englehart escrever uma errata na seção de cartas da edição explicando que o deus citado ali não era o judaico-cristão, mas ouro qualquer. O autor não gostou nada disso e se recusou a mudar. Lee pressionou e não queria ceder também, por sua vez. Englehart então, de viagem para o Texas, escreveu uma carta falsa para a editora, sediada em Nova York, se passando por um pastor chamado Billingsley e que o seu filho adorava as estórias do Doutor Estranho, em especial a sequencia que estava envolvendo Siseneg. A carta foi publicada na edição e a errata não. Depois Sean Howe contou no seu livro ‘Marvel Comics: TheUntold Story’ que Englehart, Starlin, Al Milgrom e Alan Weiss (estes últimos também quadrinistas) na época tomavam LSD e saiam por Nova York e voltavam com essas estórias doidas na cabeça - uma edição da saga onde Estranho se perde dentro do Globo de Agamotto veio com o título 'Uma Realidade Separada' (3), referência a um livro de Carlos Castaneda.  A Marvel Comics chegou a receber sacos com ‘canabis havaiana’ contendo mensagens como 'Eu fumo um antes e coloco ELO (‘Electric Light Orchestra’), ELP (‘Emerson, Lake & Palmer’) ou Pink Floyd para ler o Doutor Estranho'. A parceria com Brunner acabou pois a onda dos dois era forte: Englehart fumava algumas e deixava cair o LSD e cogumelos no script mas conseguir refazê-los, enquanto para o desenhista a coisa não era tão fácil pois imaginava várias maneiras de fazer algo e não conseguia se decidir. Desanimado com o processo deixou o título e foi trabalhar em Howard, The Duck, outro sucesso subversivo da Marvel Comics anos 70: uma versão doida do Pato Donald.

 O médico e o monstro: Dr. Estranho em uma outra realidade. Arte de Frank Brunner.


Claro que nada dessas histórias de bastidores chegaram aqui no Brasil que publicou as estórias anos depois; a maioria delas eu soube recentemente ao ler o ‘The Untold Story’. Apesar das influências do LSD, as estórias não contiam apologia ao uso de drogas colocando o Doutor Estranho como um homem de princípios, em conflitos pessoais e transcendendo-os enfrentando obstáculos como a morte definindo claramente o bem e o mal com toques de filosofias do oriente. A utilização dos alucinógenos servia apenas aos autores (Starlin também) buscarem ideias bacanas e encaixa-las em heróis honrados e lutadores. Para nós era apenas aventuras legais sem consequência negativa alguma em nosso desenvolvimento – eu acho.


Englehart não escreveu mais personagens na temática do Dr. Estranho, apenas um livro chamado 'The Point Man', porém usava do tema de forma mais discreta como numa aventura dos Vingadores onde uma prostituta vietnamita (nos anos 70!) chamada Mantis (o inseto Louva-a-Deus) torna-se a ‘Madonna Celestial’, aquela que geraria ‘o ser mais importante do universo’. E de fato ela se une a um ‘Cotati’, uma raça de plantas telepáticas alienígenas, que tomou o corpo do seu namorado morto(4). Ele também fez o Fera, um cientista mutante com Q.I. elevado (e também membro dos X-Men) dizer que lia Castaneda para lidar com a sua transformação em uma criatura peluda azul.  Para terminar criou com Starlin ‘O Mestre do Kung Fu’ inspirado na série de TV com David Carradine onde Englehart viu a chance de escrever melhor sobre a filosofia oriental que ele tratava superficialmente no Doutor Estranho; misturou Bruce Lee com personagens das novelas pulp Fu Manchu de Sax Rohmer com grande sucesso também aqui no Brasil. 

É... Alguns ainda  acham que Alan Moore e Grant Morrison apareceram com certas ideias ‘inovadoras’ nos quadrinhos.


Bruce Le... Shang Chi largando o pai . Arte de Jim Starlin.


Resumindo: a passagem de Englehart pelo Doutor Estranho tem aquilo que faz boas histórias em quadrinhos ao meu ver: emoções, expandem a imaginação e dão boas lições na criançada. Vai me dizer que John Constantine é melhor do que isso?
  
Leia a parte I: Jim Starlin e os heróis que não riem.


1 - Selo da DC Comics criado nos anos 90 focado em terror e magia inicialmente. Baseado nos fantásticos trabalhos de Alan Moore no Monstro do Pântano e Neil Gaiman em Sandman.

2 - Gestos simbólicos realizados com as mãos. Muito comum na cultura hindu. Um dos mais famosos do Dr. Estranho é o ‘chifre do diabo’, muito usado por fãs de rock.

3 - No Brasil o livro teve o nome de 'Uma Estranha Realidade'.

4 - No Brasil saiu em Grandes Herois Marvel n°10.




PS: ao pesquisar para este artigo encontrei uma estória do Thor onde aparece um diagrama do cinturão zodiacal ilustrando o fenômeno da precessão dos equinócios – o olho de Odin mostra isso ao Thor para auxiliar na explicação do Ragnarok.




E na seção de cartas o autor explica do que se trata em termos astronômicos. 




 Chupa, Vertigo Comics!

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